Esse precedente gera reflexos importantes nos controles contábeis das empresas, principalmente aquelas que terceirizam os serviços de contabilidade.

Por Paulo Olivo Vital e Paula Lippi

Em julgamento finalizado em 12 de dezembro de 2019, o STF decidiu, por maioria, que o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (“ICMS”) declarado e não pago pelos contribuintes configura crime tributário em abstrato, tipificado na lei de crimes tributários. O plenário entendeu que, por ser o vendedor de mercadorias mero depositário do imposto cobrado do adquirente, o seu não recolhimento aos cofres públicos configuraria crime contra a ordem tributária.

À exceção dos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que deram provimento ao recurso do contribuinte, os demais negaram provimento, porém, com uma importante ressalva feita de início pelo ministro relator Roberto Barroso: a conduta de não recolher ICMS, embora devidamente declarado na documentação fiscal, realmente poderia ser tipificada como crime porém, apenas em abstrato.

Ressaltaram os ministros que, para concluir se realmente haveria ou não crime, seria necessário verificar a conduta do contribuinte, ou seja, se agiu com o propósito intencional (dolo) de não recolher tributo devido ao Estado (por exemplo, embutir o preço do produto com o valor do tributo e não o recolher ou vender produto à preço predatório). Da mesma forma, o ministro Roberto Barroso destacou que deveria ser avaliado, no curso da instrução criminal, se o contribuinte é um devedor contumaz ou não. Por devedor contumaz, exemplificou algumas condutas, tais como: i) contribuinte que tem dívidas com o fisco e não procura regularizá-las, inclusive por parcelamento; ii) contribuinte que interpõe terceiros em transações comerciais, com o objetivo de ocultar aquele que realmente está praticando o negócio, contribuinte que não atualiza seu domicílio fiscal, dentre outras.

Ao final, o contribuinte acabou tendo o seu recurso negado por uma questão processual:  como o Habeas Corpus é um remédio constitucional que visa a garantia da liberdade, os meios e procedimentos de prova são limitadíssimos e, no caso, seria necessário averiguar se o contribuinte agiu ou não com dolo, o que não seria possível pela via estreita do Habeas Corpus. Resta agora aguardar os votos dos ministros Celso de Mello e Dias Toffoli, e, eventualmente, um possível pedido de modulação dos efeitos da decisão, isto é, se ela vale para condutas praticadas no passado ou apenas para o futuro, a partir da publicação do acórdão.

Na prática, o impacto desta decisão estará em separar o contribuinte sonegador do inadimplente, visto que ambos deixaram de recolher o imposto incidente, porém por razões diferentes: o primeiro, com o objetivo de sonegar, e o segundo, porque ocorreu por equívoco quanto ao processamento do pagamento.

Mas não só. Esse precedente gera reflexos importantes nos controles contábeis das empresas, principalmente aquelas que terceirizam os serviços de contabilidade. A experiência nos mostra que, nesses casos, há pouca preocupação por parte dos gestores internos em acompanhar a regularidade fiscal da empresa quando a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações fiscais é confiada a terceiros.

Os casos não são poucos: substituição dos escritórios de contabilidade sem que haja acompanhamento da transição; escritórios de contabilidade responsáveis pelas obrigações fiscais de filial que, em particular, não são acompanhados adequadamente pelos gestores da matriz; desligamento de profissionais internos responsáveis pelas rotinas contábeis sem averiguação do cumprimento das obrigações tributárias, dentre outras situações.

Seriam estes casos de despreocupação da terceirização de contabilidade enquadrados como inadimplência ou sonegação? Se caracterizada como sonegação, apesar da responsabilidade criminal ser do contador, há uma exposição negativa da imagem da empresa contratante que pode acarretar perda de negócios e contratos ou depreciação do valor de suas ações.

Para tanto, caberão às empresas que terceirizam este tipo de serviço, desenvolver um programa de compliance especifico para fornecedores (se é que já não o fazem por outras formas) exigindo-lhes seguir diretrizes legais e de integridade; controles contábeis mais sofisticados; treinamentos; bem como proporcionando um monitoramento contínuo das suas atividades e controles.

Certamente, este precedente possibilitará um estreitamento das práticas de sonegadores, exigindo uma ampliação do compliance não só das empresas contribuintes, mas também de seus fornecedores para, assim, assegurar integridade das primeiras. Resta agora aguardar uma simplificação do sistema tributário nacional para se evitar ainda mais as práticas sonegadoras.

Publicado em Migálhas em 30 de janeiro de 2020.